quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

ESPECIAL - Padre Aristides. 09 de Fevereiro, feriado em Piancó


O sacerdote-político morto por soldados da Coluna Prestes, em 1926, no Piancó, Sertões paraibanos, não está só em livros de História e nos cordéis

Este é outro daqueles textos que parecem agradar aos leitores, começando assim: "Poucos sabem, mas a verdade é que...". Pois bem, pouca gente sabe disto, aqui, na Paraíba, terra onde os fatos se deram — mas a verdade verdadeira é que o padre Aristides Ferreira da Cruz (1872-1926), um dos "mártires de Piancó", não é citado apenas por livros de História e em folhetos de cordel da Paraíba em particular e do Nordeste em geral.

Ele, o padre Aristides, figura histórica mui conhecida dos sertanejos, de há muito também se tornou personagem (meio de ficção, meio de realidade) de pelo menos um par de romances de dois importantes escritores nacionais: o romancista gaúcho Érico Veríssimo e o escritor e contista paranaense Domingos Pellegrini.

Sobre Érico Veríssimo, não carece dizer nada, tão conhecido é dos leitores, mesmo os de hoje. Além do mais, veio a ser pai do escritor e cronista Luís Veríssimo, outro imenso artista de nossas Letras. Mas é talvez necessário aduzir algo sobre o paranaense Domingos Pellegrini, não tão citado em nossas plagas, apesar de já haver lançado uma penca de livros relevantes — e de já ter recebido dois Prêmios Jabuti de Literatura, em 1977 e 2001.

Pellegrini, nascido em Londrina (PR), no ano de 1949, já lançou uma pá de livros, destacando-se especialmente no conto, no romance, na poesia, no livro juvenil. Entre suas obras, a ênfase vai para Terra vermelha (a história da colonização do Paraná); O caso da Chácara Chão; e O homem vermelho (contos), os dois últimos premiados. O multifário Pellegrini — escritor, poeta, jornalista, publicitário, articulista, cronista e figura bem conhecida e amada em Londrina — reside na tal Chácara Chão do título de um de seus livros. E escreve principalmente para o Jornal de Londrina e para a revista Globo Rural, entre outras publicações.

Érico cita o padre Aristides no romance tripartite O arquipélago [Editora Globo, Porto Alegre, 1961-1962]. Quem leu essa trilogia ainda na década de 1960, pôde intuir: para colocar o sacerdote piancoense como personagem de sua obra romanesca, Veríssimo sem dúvida inspirara-se no imperdível livro Coluna Prestes: Marchas e combates.

Vem a ser o fiel relato feito pelo "secretário" da mais longa marcha revolucionária já vista pela Humanidade, o Dr. Lourenço Moreira Lima. Era ele o "bacharel feroz", de família paraibana, filho do segundo presidente do Tribunal de Justiça do Estado, o desembargador Joaquim Moreira Lima e neto do comendador de igual nome.

Veríssimo deve ter lido a segunda edição da obra de Moreira Lima, saída pelaEditora Brasiliense, em 1945, com 631 páginas (a primeira edição, em dois volumes, aparecera em 1931). De qualquer modo, o Padre Aristides surge, aí, como personagem por assim dizer eventual ou en passant. O mesmo ocorre com o uso que dele faz Domingos Pellegrini em sua bela história No coração das perobas [Record, Rio de Janeiro, 2002] — embora sua presença tenha real importância para a trama dos dois romances.

Piancó, por si, já significaria pavor

Tupinólogos há que sustentam: Piancó quer dizer ‘evolução’. Para outros, significaria ‘terror’, ‘pavor’, ‘aquele que leva medo aos inimigos’. Tal nome foi dado a um dos chefes indígenas dos coremas que habitavam a região depois conhecida como Vale do (rio) Piancó.

Pavor foi exatamente o que sentiu a então Vila de Piancó, no Alto Sertão da Paraíba, quando, a 8 de fevereiro de 1926, soube da aproximação da Coluna Prestes, que, egressa do Ceará e do Rio Grande do Norte, adentrara o território paraibano. Não era realmente "a Coluna Prestes", mas apenas um pequeno grupo de um dos Destacamentos da própria.

Ao amanhecer do dia 9, praticamente todos os habitantes da Vila tinham dado às de Vila-Diogo — isto é, fugido para as serras, fazendas ou localidades vizinhas, levando pertences. Ficou em Piancó apenas reduzido aglomerado de civis e militares armados, sob a liderança do polêmico chefe político local, o padre Aristides Ferreira da Cruz. Estava suspenso das ordens por viver maritalmente com uma moça.

Com amigos, o padre Aristides montou quatro piquetes para receber à bala possível invasão da Vila pelos homens de Prestes. Ocorre que, tendo visto bandeiras brancas pelas estradas e em tetos de casas, muitos revolucionários da Coluna achavam que iriam ser recebidos em Piancó sem resistência. Mas, quando um pequeno grupo de rebeldes entrou na rua do Conselho Municipal (uma espécie de Prefeitura), tiros vindo do piquete dos policiais feriram mortalmente o Capitão Pretinho, um dos mais queridos coluneiros. O pequeno grupo da Coluna Prestes se retirou, deixando esse e outros mortos. Mas, cerca de 20 minutos depois, voltou altamente reforçado com gente do Destacamento Cordeiro de Farias. Logo depois, chegavam também efetivos do Destacamento Djalma Dutra.

Irados com a má recepção vinda dos habitantes e principalmente com a morte do Capitão Pretinho, cuja vida "todo o Piancó, queimado, não pagaria", os homens de Prestes se lançaram sobre a Vila dispostos a vingar a perda e punir os responsáveis pelo que consideravam uma traição. Em inícios da tarde, muitos dos defensores da cidades arranjaram jeito de fugir. Permaneceu apenas o grupo liderado, numa casa, pelo padre Aristides, sob intenso tiroteio.

Outro companheiro dos revoltosos caiu sob as balas vindas da casa em que se encontrava o sacerdote. Aí, ainda mais irritados, os rebeldes não tiveram duvida: jogaram uma lata de gasolina na janela frontal, que explodiu com estrondo. Dois dos amigos do padre tentaram fugir por uma janela lateral. Só um teve êxito, embora ferido. O outro, também baleado, morreu na hora.

Finalmente, os rebeldes conseguiram penetrar na sala da frente da residência, ainda enfrentando resistência no corredor. O Padre finalmente se entregou, pedindo clemência para os seus e declarando sua condição de sacerdote. "Padre?! Que nada! Você vai é pagar com a vida pela morte de nossos companheiros!" — disseram-lhe os irados revolucionários.

Como foi o bárbaro trucidamento do sacerdote, deputado e chefe político

O padre e seus homens remanescentes viram-se arrastados da casa para um barreiro próximo. Sabendo que ia morrer degolado, segundo o bárbaro costume de cangaceiros, jagunços, macacos, policiais militares e até soldados da Coluna que os chefes não logravam conter, Aristides insistiu em declarar-se sacerdote, ser o responsável por tudo e pedir clemência para os amigos.

Pediu também que lhe dessem um tempo para rezar e se preparar para a morte. Isto lhe foi igualmente negado. E, na exaltação dos ânimos, ocorreu o sumário ritual do trucidamento por degola. Inquirido, de joelhos e de costas para o carrasco, o infeliz tem o queixo fortemente levantado para cima, de modo que fique com a carótida à mostra e olhando para a face do verdugo. Súbito, este lhe corta a garganta com profundo golpe de faca-peixeira ou facão. Tal qual se sangra(va) um porco.

O barreiro (que, obviamente, era cor de barro) logo se tornou inteiramente tinto do sangue do padre e de seus companheiros. Depois, um dos soldados chegou ao requinte de castrar Aristides e lhe enfiar os testículos boca adentro. Simultaneamente, ou logo em seguida, eram da mesma forma executados os guarda-costas do padre. Alguns corpos (ou alguns ainda vivos) foram até arrastados por cavalos caatinga afora.

No lugar do trucidamento do padre Aristides, existe Memorial cuja fotografia saiupublicada num dos mais recentes livros do mui respeitável intelectual vale-piancoense Franciraldo Loureiro Cavalcante. Franciraldo lá esteve, com outros luminares, como Gonzaga Rodrigues e Francisco das Chagas Lopes — e pôde rever a lista das mais de 15 vítimas do destino, além do padre, todos sacrificados nessa refrega que ninguém podia prever e que ainda hoje paira, como mancha negra, acima da aura de civismo e dos reais serviços prestados à democratização brasileira pela impressionante Coluna Prestes.

A propósito, sairá brevemente outro livro do Desembargador Coriolano Dias de Sá, do qual somos Editor. Intitula-se justamente Roteiro da Coluna Prestes e esmiúça o percurso (e a repercussão) da Coluna em todo o País, especialmente, na Paraíba e em Piancó.


Evandro da Nóbrega
ESCRITOR, JORNALISTA, EDITOR
http://druzz.blogspot.com
druzz@reitoria.ufpb.br

Pesquisa: Antonio Cabral/Historiador (FIP-Patos-PB)